A digitalização dos serviços cartoriais está transformando profundamente a forma como cidadãos e empresas lidam com documentos, contratos e registros oficiais no Brasil. Desse modo, o avanço do cartório digital, que plataformas como o e-Notariado impulsionam, promete agilidade, acessibilidade e redução da burocracia. Mas será que essa revolução chega com a mesma força em todas as regiões do país? Portanto, nesta entrevista exclusiva, Juliana Lobato — ex-tabeliã de um cartório no interior paulista e atual colunista da Revista Perfil — compartilha os bastidores da gestão de cartórios, analisa os limites legais da inovação no setor e aponta os desafios (e as burocracias) que impedem o avanço equitativo da transformação digital nos cartórios brasileiros.
Quem é Juliana Lobato?
Juliana Lobato Rodrigues Carmo é formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e cursou Redação Publicitária na renomada Miami Ad School. Consegui aprovação no concurso para Tabelionato de Notas e Registro Civil de Pessoas Naturais em 2013. Depois, assumiu no mesmo ano a delegação do Cartório Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelionato de Notas de Pedro de Toledo, no interior de São Paulo.
Após mais de onze anos atuando no setor, deixou as atividades para se dedicar a novos projetos. Hoje, voltou a advogar, com foco no setor imobiliário, atendendo incorporadoras. Juntamente com isso, assina uma coluna na Revista Perfil, onde escreve sobre comportamento humano, cultura e contemporaneidade.

Cartório digital: o que está realmente mudando?
A digitalização dos serviços cartoriais é uma das transformações mais relevantes do sistema jurídico brasileiro nas últimas décadas. Com iniciativas como o e-Notariado, muitos atos que antes exigiam presença física — como escrituras públicas, reconhecimento de firma e autenticação de cópias — agora podem ser feitos online.
Juliana Lobato descreve esse avanço como “uma revolução silenciosa”: “Hoje em dia você consegue até assinar escrituras públicas, reconhecer firmas e autenticar cópias por meio do E-notariado. Todo mundo que usa, gosta. Isso foi, de fato, uma revolução.”
Cartórios no interior: mais responsabilidade, menos estrutura
Apesar dos avanços, a ex-tabeliã chama atenção para uma realidade pouco discutida: os desafios que os cartórios de pequenas cidades enfrentam. “Num cartório, embora o ingresso seja por concurso público, a gestão é 100% privada. Com receita incerta e oscilante, como em qualquer negócio. Quando você assume uma delegação em uma cidade de baixo IDH, a receita será proporcional à realidade socioeconômica da região.”
Além disso, Juliana Lobato destaca o peso das gratuidades legais, a impossibilidade de expandir a atuação para além dos limites territoriais e a exigência de residência na comarca: “É muita responsabilidade e muita regulação para pouco retorno financeiro.”
As barreiras para o cartório digital se expandir
Um dos pontos mais marcantes da entrevista foi a crítica às limitações legais que dificultam a inovação, especialmente em cidades menores:
“Com o ciberespaço e a ausência de fronteiras da internet, minha esperança era de que pudéssemos levar recursos da capital para as cidades pequenas. Mas continuam restringindo a atuação territorial. É tudo feito para que os grandes continuem sendo grandes.”
Segundo ela, o cartório digital poderia ser uma ponte para diminuir desigualdades regionais, mas ainda falta apoio legislativo e investimento.

O cartório digital pode ajudar a inclusão no Brasil?
Sim, mas com ressalvas. Juliana Lobato acredita que a tecnologia pode ampliar o acesso a serviços cartoriais em regiões remotas — desde que existam infraestrutura digital, capacitação e respaldo jurídico.
Ela observa que nas cidades menores, a população mais jovem está pronta para adotar novas ferramentas, mas a falta de investimento e a resistência das gerações mais antigas ainda limitam o avanço: “No interior, o que não se tem mesmo é infraestrutura e investimento. E a resistência das pessoas mais velhas talvez seja maior.”
Inovação vinda do interior para a capital é um sonho ou possibilidade?
Quando questionada sobre a possibilidade de uma inovação tecnológica em cartórios “vindo do interior para a capital”, Juliana Lobato é direta:
“Só se a Lei respaldar a iniciativa. Sem isso, não há como romper o ciclo.” A legislação atual ainda favorece estruturas tradicionais e impede iniciativas locais de ganharem escala. A entrevistada destaca que, mesmo com boas ideias, a mudança só virá com vontade política e modernização legal.
Como você vê o futuro dos cartórios no Brasil?
Para Juliana Lobato, os cartórios não vão desaparecer, mas passarão por uma grande transformação. O modelo híbrido — que combina serviços presenciais e digitais — deve se tornar a norma: “Eles vão se transformar e ainda têm um tempo de existência pela frente no Brasil.” Ela também alerta que, enquanto a legislação exigir que certos atos sejam realizados em cartório — como registros civis e escrituras públicas —, a função continuará essencial. No entanto, é preciso acompanhar as mudanças do mundo digital para não se tornar obsoleto.
Cartório como serviço público de gestão privada: modelo sustentável?
Juliana Lobato acredita que o modelo atual ainda tem fôlego, mas exige ajustes:
“Acredito que o modelo atual, de cartório como serviço público delegado à iniciativa privada, ainda pode ser sustentável no ambiente digital — mas isso exigirá adaptações e uma constante revisão do arcabouço legal. Assim como todas as instituições, os cartórios vão precisar evoluir para acompanhar a velocidade das transformações tecnológicas e as novas formas de organização da sociedade.
Hoje, há uma compreensão equivocada de que a digitalização poderia tornar os cartórios obsoletos. Mas a realidade é que muitos dos atos praticados pelos cartórios continuam sendo exigidos por lei — como os registros de nascimento, casamento, óbito e transferência de propriedade de bens imóveis. Isso significa que, independentemente da tecnologia disponível, a formalização desses atos fora do cartório ainda coloca o cidadão em risco jurídico.”
Exemplos e sustentabilidade do modelo
Juliana continua: “Por exemplo, muita gente acredita que é possível formalizar a compra e venda de um imóvel com um simples contrato particular. No entanto, sem a lavratura da escritura pública e o posterior registro no cartório de imóveis, esse contrato não transmite a propriedade legalmente. Na melhor das hipóteses, pode ser considerado uma posse — e isso apenas se houver uma interpretação generosa do Judiciário. A pessoa pode achar que é dona de um bem, mas do ponto de vista jurídico, ela apenas ocupa o imóvel.
Dito isso, a sustentabilidade do modelo passa por dois caminhos. O primeiro é garantir que os cartórios continuem cumprindo sua função de segurança jurídica e fé pública com qualidade, eficiência e transparência, mesmo em meios digitais. O segundo é a modernização da legislação: permitir mais integração digital, reduzir burocracias desnecessárias e adaptar a estrutura cartorial a um mundo em que as fronteiras físicas são cada vez menos relevantes.
O cartório digital não é inimigo da gestão privada — pelo contrário, é uma oportunidade de tornar o serviço mais eficiente, acessível e alinhado às demandas da sociedade contemporânea. Mas para isso, é fundamental que o sistema legal acompanhe essa transformação, sob o risco de manter a população à margem dos seus próprios direitos.”
Qual seria a principal mudança para modernizar os cartórios no Brasil?
Juliana Lobato não hesita: “Absorver toda a tecnologia possível e desburocratizar tudo o que for viável.” Ela reconhece os avanços já feitos, como o divórcio extrajudicial mesmo com filhos menores, desde que haja acordo homologado. Segundo ela, a atuação dos cartórios tem sido essencial para desafogar o Judiciário e oferecer soluções mais práticas à população: “É mais rápido, prático e incentiva relações amigáveis.”
O cartório digital é um caminho sem volta — mas ainda com muitos obstáculos. A entrevista com Juliana Lobato mostra que o cartório digital já é uma realidade, mas que ainda esbarra em desigualdades regionais, limitações legais e falta de infraestrutura. Se o Brasil quiser de fato modernizar o setor extrajudicial, será preciso investir em legislação inteligente, inclusão digital e descentralização de oportunidades.